24/07/2013

Mais médicos ou mais votos?

Recentemente lançado pelo Ministério da Saúde (MS), o Programa Mais Médicos (PMM) se tornou assunto de debate e preocupação entre estudantes e profissionais médicos, que mostram, na maior parte das vezes, discordância com o proposto pelo governo federal. Mas, por que eles tem se posicionado contra o programa? Será simplesmente por corporativismo, como pretendem os defensores do governo?
Em primeiro lugar, tendo como tema "Mais médicos para o Brasil, mais saúde para você", o PMM já parte de um pressuposto incorreto: o de que bastam médicos para promover saúde, negando a realidade que médicos são parte de uma complexa infraestrutura de saúde, que compreende outros profissionais, insumos, equipamentos de diagnóstico e estruturas mínimas para intervenção e tratamento. Afinal, o que pode um médico fazer apenas com seu estetoscópio e sua boa vontade em uma região isolada, impossibilitado de solicitar exames mínimos, como hemograma ou radiografias, ou de prescrever medicamentos adequados?  

Em segundo, o "Diagnóstico da Saúde no Brasil", que reúne os dados que justificam a criação do PMM, insiste em afirmar que faltam médicos no país ao comparar a relação de médicos por habitantes de outros países, sem questionar a distribuição das equipes de saúde e o volume de investimento em saúde, muito inferior no Brasil em relação à maior parte dos países comparados. O governo persiste em divulgar um número cabalístico de tantos médicos por habitante que simplesmente não é encontrado em nenhuma recomendação da OMS, como discutimos em: 

Ainda quanto ao "Diagnóstico da Saúde no Brasil", este apresenta uma tentativa grosseira e aviltante de indispor a população contra a classe médica, ao dizer que "Segundo pesquisa do IPEA (divulgada em 3/07/13), entre 48 carreiras universitárias, a medicina ocupa o primeiro lugar em ranking de melhores salários, jornada de trabalho, taxa de ocupação e cobertura de previdência. (...) O salário médio de médicos é R$ 6.940,12, considerando recém-formados. Para quem já está no mercado de trabalho, a média salarial é R$ 8.459,45 (o mais alto entre as carreiras analisadas). Medicina é a quarta profissão com maior aumento de salário entre 2009/2012 de uma lista de 48 profissões de nível superior".

Tal citação é simplesmente despropositada dentro do documento, claramente servindo apenas como contrapropaganda do governo, que tenta retratar os médicos como elitistas, corporativistas, para não dizer mercenários e vigaristas, descomprometidos com o atendimento à saúde pública. A cruel realidade encoberta por estes dados permanece desconhecida pela maior parte da população que não trabalha na área, como temos a oportunidade de ver nas redes sociais e na mídia pelos comentários de apoio ao PMM e de reprimenda aos médicos.
https://www.youtube.com/watch?v=jSqjcLfGvwE

Por outro lado, a primeira proposta do PMM, que consiste em convocar médicos para atuar na atenção básica de periferias de grandes cidades e municípios do interior do país, amplamente criticada pelas entidades médicas foi habilmente transformada pela equipe de marketing do governo em uma armadilha para os médicos. Ao invés de afirmar claramente que abriria as portas para médicos estrangeiros sem revalidação de diploma, o MS afirma que “as vagas serão oferecidas prioritariamente a médicos brasileiros, interessados em atuar nas regiões onde faltam profissionais e, no caso do não preenchimento de todas as vagas, o Brasil aceitará candidaturas de estrangeiros, com a intenção de resolver esse problema, que é emergencial para o país”. Ora, se não existem médicos nas áreas de difícil provimento, já está claro que os médicos brasileiros se recusam a trabalhar nas condições precárias destas regiões e, ao colocar desta forma, o governo só pretende culpá-los pela falta de equipamento de saúde, negando sua própria responsabilidade.

Outro ponto interessante nesta proposta é a justificativa de que a contratação de médicos estrangeiros sem a devida revalidação de diplomas é necessária pelo caráter emergencial do problema de saúde para o país. É interessante o fato de um partido que está há 11 anos no poder perceber somente às portas de uma eleição presidencial a necessidade premente de solucionar o problema das regiões de difícil provimento.

A outra vertente central do PMM, intitulada de “Mais formação” que propõe a criação de um “segundo ciclo de formação médica” de trabalho obrigatório no SUS, também apresenta diversas falhas. Em primeiro lugar, por se basear na importação sem critério de experiências de outros países, que tanto caracteriza nossas políticas em saúde. Embora países como Inglaterra e Suécia já realizem ações semelhantes, terá o Brasil estrutura semelhante para seguir o exemplo? Estará nosso SUS tão bem organizado quanto o NHS para absorver todos os estudantes de Medicina na prática supervisionada de atividades de ensino?

Outro ponto a ser questionado é se a formação dos estudantes de Medicina está tão distante do SUS, como pretende o MS. Na verdade, a maior parte dos currículos médicos já apresenta ao menos um mês de trabalho na atenção básica, que costuma ser caracterizado pela inadequação do ensino supervisionado, muitas vezes pela sobreposição das atividades de médico da atenção básica e preceptor. Neste ponto, atingimos um verdadeiro nó górdio: como convencer professores a sair da academia para ensinar em regiões sem a mínima infraestrutura ou como fazer com que médicos não treinados em atividades pedagógicas deixem de atender a população para ensinar os acadêmicos? Entretanto, nada disto tem sido considerado pelo governo ao propor seu maravilhoso “segundo ciclo”, o que indica que a execução da proposta será bem menos efetiva, para não dizer organizada, que o previsto.

Além disso, o estabelecimento de um registro provisório para atuação neste “segundo ciclo” sem considerar a opinião do CFM sobre o assunto configura um verdadeiro desrespeito às entidades de representação médica.  Sem falar que o governo ainda não conseguiu explicar satisfatoriamente o que significará tal registro provisório, isto é, qual será a situação jurídica destes profissionais, o que mais uma vez nos permite questionar seu real compromisso com a qualidade do atendimento à população.

Por outro lado, a abertura indiscriminada de vagas em cursos de Medicina e em formação de especialistas traz preocupação quanto à qualidade do ensino que será oferecido. Em que serviços 11,5 mil acadêmicos e 12 mil residentes realizarão suas atividades de formação? Qual infraestrutura eles encontrarão? É inegável que a formação em Medicina exige uma importante dimensão prática e propor a criação de mais vagas sem discutir a demanda por estrutura de ensino prático que isto gerará mostra apenas descomprometimento do governo com a qualificação dos médicos e residentes a serem formados.

Ainda, não podemos nos esquecer dos mais interessados neste programa, a própria população brasileira. Será que o envio de médicos estrangeiros pouco capacitados ou de graduandos em treinamento, muitas vezes sem supervisão, realmente atenderá as necessidades de saúde desta população ou só disfarçará um problema, sem nem sequer se aproximar de sua verdadeira solução? As propostas das entidades médicas para resolver a questão das regiões de difícil provimento divergem completamente do que é proposto pelo governo, como afirma o presidente do CFM, Roberto D’Ávila:

Diante do exposto, precisamos nos questionar a quem o Programa Mais Médicos realmente atende. À população brasileira carente de serviços de saúde? Aos médicos que demandam melhores condições de trabalho? Aos graduandos de Medicina que precisam de maior qualidade na formação? Ou ao governo que busca reeleição?   

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