"A história da medicina é uma história de vozes. As vozes misteriosas do corpo: o sopro, o sibilo, o borborigmo, a crepitação, o estridor. As vozes inarticuladas do paciente: o gemido, o grito, o estertor. As vozes articuladas do paciente: a queixa, o relato da doença, as perguntas inquietas. A voz articulada do médico: a anamnese, o diagnóstico, o prognóstico. Vozes que falam da doença, vozes calmas, vozes ansiosas, vozes curiosas, vozes sábias, vozes resignadas, vozes revoltadas. Vozes que se querem perpetuar: palavras escritas em argila, em pergaminho, em papel, no prontuário, na revista, no livro, na tela do computador. Vozerio, corrente ininterrupta de vozes que flui desde tempos imemoriais, e que continuará fluindo."
São precisamente estas vozes perpetuadas na escrita que o escritor brasileiro Moacyr Scliar (1937-2011) retrata em seu livro A Paixão Transformada: história da Medicina na Literatura (1996). Médico sanitarista, Scliar constrói um panorama da história da Medicina a partir do que diversos escritores, médicos ou não, escreveram a seu respeito ao longo da história. Sua seleção engloba desde citações de textos milenares como o Nei-ching e o Susruta Samhita, passando por diversas fases da literatura mundial, com autores como Montaigne, Molière, Flaubert e Machado de Assis, até escritores mais contemporâneos, como Herman Hesse, Carlos Drummond de Andrade e Sylvia Plath; sem deixar de fora, é claro, grandes nomes da Medicina, como Harvey, Hunter, Semmelweiss, Koch e Chagas.
Clínica Agnew (1889). Thomas Eakin (1844-1916). Óleo sobre tela, 214x300 cm. Philadelphia Museum of Art (Philadelphia)
Ao abordar a fecunda relação entre literatura e Medicina, Scliar nos apresenta não somente diversos médicos-escritores, como Rabelais, Tchekhov e Conan Doyle, ou autores médicos, como Hipócrates, Rhazes, Ramazzini, Snow e Gaunt, mas também o que diversos escritores leigos, por assim dizer, falaram sobre a doença e a prática médica. Dessa forma, o autor traça mais do que apenas um esboço de história da Medicina, nos permitindo vislumbrar a enfermidade em seu contexto histórico. Conhecemos a peste bubônica com Boccaccio e Defoe, a sífilis com Francastoro, o cólera com García Márquez, a doença terminal com Tolstoi.
Brasileiro, médico e escritor prolífico, Scliar pode ser incluído entre os melhores escritores recentes da língua portuguesa, o que pode ser demonstrado, neste livro, por sua habilidade em selecionar e comentar citações tão expressivas sobre o adoecimento e a arte de curar. A Paixão Transformada é uma oportunidade única para ampliar nossos horizontes sobre a Medicina ao mergulhar na corrente ininterrupta de vozes que compõe sua história.
"Os sintomas da doença nada mais são que uma disfarçada
manifestação do poder do amor, toda doença é apenas
paixão transformada"
Thomas Mann (1875-1955) - A montanha mágica (1924)
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